Roberto Malvezzi (Gogó)
1) Contexto.
A
humanidade atravessa um momento onde um bilhão de pessoas passa fome e
1,2 bilhões não tem um copo de água limpo para beber. Fome e sede
continuam sendo os problemas fundamentais da humanidade.
Porém,
para alguns cientistas, como James Lovelock, diante do Aquecimento
Global todos os outros problemas humanos são irrelevantes. Ele tem o dom
de tornar pior todas as tragédias humanas, inclusive a fome e a sede. O
Aquecimento Global tem entre suas causas a emissão de CO2 na atmosfera
pela derrubada e queima de florestas. Na contribuição perversa do
Brasil nesse problema, o desmatamento é o fator número um.
No
século XIX Malthus já debatia com seus contemporâneos o agravamento da
disponibilidade mundial de alimentos diante do crescimento
populacional. A humanidade cresceria de forma geométrica, enquanto a
produção de alimentos cresceria de forma aritmética. Entretanto, a
chamada revolução verde, a base de químicos e maquinários agrícolas,
conseguiu multiplicar a produção de alimentos para além do crescimento
populacional. A tese de Malthus, portanto, caiu por terra.
Entretanto,
na Cúpula Mundial do Meio Ambiente em 2002, Johanesburgo, África do
Sul, um documento da ONU trazia um novo olhar sobre a questão, fazendo
uma interessante conexão entre água (water), saúde (Health), energia
(energy), agricultura (agriculture) e biodiversidade (biodiversity). Por
isso, em inglês, o documento acabou rotulado pelas iniciais WEHAB.
A
constatação do documento era crucial, isto é, a produção mundial de
alimentos tinha se multiplicado às custas da devastação dos solos, da
contaminação e uso intensivo água, da biodiversidade, além do saqueio
dos territórios das comunidades tradicionais. Apesar da produção de
algumas comodities agrícolas ter se multiplicado, multidões estavam
passando fome e sede, particularmente no meio rural. Portanto, não
existia a mágica da revolução verde, a não ser que suas conseqüências
nefastas sobre o meio ambiente e as populações fossem ocultadas. Hoje,
quando se fala que temos produção agrícola para saciar toda a
humanidade, sendo o problema apenas de acesso, se oculta em que bases
destrutivas essa produção está acontecendo.
Para
se estabilizar demograficamente, os estudos mais recentes nos dizem
que a humanidade deverá chegar a nove bilhões de pessoas m 2050, dois a
mais que os atuais sete bilhões. Esse é outro argumento para
pressionar a produção de alimentos.
Para
agravar o cenário, o documento prevê que o aumento da população iria
direcionar a produção agrícola para “áreas frágeis e de risco”, piorando
ainda mais a sustentabilidade ambiental da produção agrícola.
Para evitar essa insanidade o documento faz as seguintes recomendações:
. redução da degradação da terra;
. melhorar a conservação, alocação e manejo da água;
. proteção da biodiversidade;
. promover o uso sustentável das florestas;
. informações sobre o impacto da mudança climática.”
2) O Texto.
É
nesse contexto mundial de degradação de solos, escasseamento da água,
erosão da biodiversidade e florestas, crescimento populacional e o
Aquecimento Global para agravar o que já é complexo, que se coloca a
proposta de alteração do Código Florestal Brasileiro. As propostas para
alteração no Código têm como argumento fundamental o aumento da
produção de alimentos.
Há
tempos já se sabia que o Brasil era rico em solos, água, sol e
biodiversidade. Entretanto, há tempos também se sabe que os solos do
Cerrado, Caatinga e Amazônia são frágeis, nem sempre aptos para a
agricultura. A prova é que a pecuária e agricultura já deixaram para
trás 80 milhões de hectares de terras degradados. Hoje fala-se em
recuperar essas áreas, mas a verdade é que se prefere avançar sobre
novas áreas “´frágeis e de risco”, como já advertia a ONU.
As
mudanças no Código Florestal vêm nesse contexto de quebrar as
barreiras legais para o avanço da agricultura e pecuária sobre essas
áreas. As mais simbólicas são exatamente as áreas de preservação
permanente, como as matas ciliares dos rios, e morros com inclinação
acima de 45º. Mas, não é só. Também se quer ampliar a área de
desmatamento na Amazônia para fins agrícolas.
O
gatilho que disparou a reação violenta dos ruralistas é a execução das
multas originadas por crimes ambientais, sobretudo o desmatamento das
áreas de preservação ambiental. Acossados pela execução das multas,
decidiram mudar as leis. Portanto, legislam em causa própria.
Mas,
o argumento público é a produção de alimentos, fartamente repetido
pelos empresários do agronegócio, mas agora também por setores dos
pequenos agricultores. Nesse sentido, além de questões técnicas, existem
dimensões políticas e éticas permeando essas alterações.
No
contexto geral, essa agricultura brasileira baseada na ampliação do
desmatamento, do avanço sobre as áreas frágeis e de risco, sobre os
mananciais de água, mostra-se insustentável a médio e longo prazo. Esse
modelo não tem como se sustentar – precisa de 5,2 litros de veneno por
brasileiro para produzir e já consome 70% de nossa água doce - mesmo
que dê respostas econômicas para a exportação imediata.
Esse
é o nó da questão: o Brasil reprimarizou sua economia. Agora essas
comodities agrícolas representam 36% das exportações brasileiras (www.porkworld.com.br),
enquanto no regime militar a agricultura não representava muito mais
que 8%. Com a demanda mundial por soja, etanol, carnes – e agora
minérios para sustentar a demanda chinesa -, o Brasil tem quebrado todas
as leis – vide Código Florestal, Código Minerário, etc. – para
facilitar a vida do capital desses ramos econômicos, mais que nunca
poderosos do ponto de vista econômico e político. Vale recordar que a
produção de alimentos no Brasil, 70% vem da agricultura familiar, não da
empresarial (Censo Agropecuário 2006).
Dados recentíssimos afirmam que 64% da área desmatada da Amazônia se destinaram à pecuária e apenas 5% à agricultura (F.S.Paulo 02/09/2011 - 15h13). Diante dos fatos, os argumentos em favor das mudanças perdem força.
Portanto,
fechar os olhos para os interesses dos grupos envolvidos, e fechar os
olhos sobre os impactos desse tipo de agricultura sobre a natureza e as
comunidades, sobretudo, fechar os olhos sobre a lógica predadora e
acumulativa dessa disputa, é decididamente tomar partido daqueles que
criaram a crise da sustentabilidade. O que está em jogo é o solapo dos
bens naturais – solos, água, biodiversidade – que sustentam a
humanidade. Podemos produzir mais agora, mas, decididamente, vamos
comprometer as bases naturais para as gerações futuras.
3) As Alterações no Código e os Pequenos Agricultores.
Um
problema de ordem prática que se coloca é que muitos pequenos
agricultores também estão entre os que depredaram suas áreas de
preservação permanente e plantaram em morros com inclinação acima de
45º. Ainda mais, muitas das pequenas propriedades estão nesses morros.
Portanto, estão impedidos de ampliar sua área agrícola.
Primeiro,
para tratar dessa questão, não é necessário fazer as mudanças no
Código Florestal que estão sendo propostas. Nesse sentido, os pequenos
estão sendo bois de piranha dos grandes interesses. Há propostas de
ocupar essas áreas com árvores frutíferas e outros manejos que tenham
finalidade econômica e ao mesmo tempo respeitar a demanda da natureza. O
Código tem base científica e, vale lembrar, que a ciência protesta
contra as mudanças exatamente porque foi posta de fora dessas decisões.
Os cientistas que participam foram convenientemente escolhidos pelos
interessados na mudança do Código.
A
simples possibilidade que agricultores com até quatro módulos sejam
poupados pela mudança do Código, já fez com que áreas enormes já estejam
sendo retalhadas para se enquadrarem no novo padrão legal. Portanto,
maquia, mas não resolve o problema.
Além
do mais, não se resolve um problema social criando mais um problema
ambiental. Muitas das pequenas propriedades são inviáveis não porque
respeitam as leis ambientais, mas porque são minifúndios, portanto,
tecnicamente são áreas pequenas demais para viabilizar a vida de uma
família naquele espaço. Portanto, a questão remete à concentração da
terra no Brasil, não ao problema ambiental da preservação em si mesmo.
Ele só aparece porque não há espaço outro para a expansão da atividade
familiar.
4) Novas técnicas agrícolas e preservação.
Surgiram
algumas técnicas para garantir a produção e evitar, por exemplo, a
erosão dos solos. Uma delas é o chamado “plantio direto”. Evita-se o
revolvimento do solo com máquinas, praticamente plantando sobre as
palhas da cultura anterior as novas sementes. De fato, diminui em muito a
erosão. Esse tipo de técnica está sendo usado como argumento para
facilitar o desmatamento em função da agricultura extensiva.
Mas,
é bom lembrar que o plantio direto não evita a força dos ventos, muito
menos tem a capacidade de fixar carbono que as florestas têm. Além do
mais, exige doses colossais de venenos. Portanto, é preciso olhar a
questão no seu conjunto.
Quanto
à redução das matas ciliares, evidente que ter 12 metros é melhor que
não ter nenhum metro. Mas, é preciso lembrar que só na área de Minas
Gerais, nascentes do São Francisco, mais de 1200 pequenos riachos foram
extintos, o que vai impactando diretamente na força do rio, nesse caso o
São Francisco. Quando chove há água, mas quando ele precisa de seus
afluentes e aquíferos de abastecimento – aqüífero Urucúia -, então o rio
mostra a fragilidade a partir do desmatamento do Cerrado. Entre
vegetação e água existe uma conexão indissolúvel.
É
importante pensar a partir dos biomas, mas é essencial pensar a
interconexão dos biomas. Por exemplo, o grande reservatório de águas do
Brasil está no Cerrado. Ele abastece as bacias do sul (Prata), Nordeste
(São Francisco) e Norte (Araguaia-Tocantis) e Amazônica. Preservar os
Cerrados é preservar grande parte das águas brasileiras.
O
Aquecimento Global, pelos estudos já realizados, vai aumentar a
temperatura do semiárido, diminuir disponibilidade de solos agrícolas em
torno de 1,5% ao ano e diminuir a disponibilidade hídrica. A perda
total de solos agrícolas do semiárido pode chegar a 60% em alguns
estados em 50 anos (Embrapa Semiárido). A Amazônia tende a tornar-se uma
savana. Acontece que grande parte das chuvas que caem no sul e sudeste
do Brasil tem sua origem no rio aéreo que desce da Amazônia para o
sul. Sem Amazônia não há, portanto, agricultura no sul e sudeste.
Portanto,
modificar todo esse sistema complexo, no qual a vegetação tem
influência decisiva, é mais que temerário, é uma loucura. Quebrar a
legislação por interesses econômicos e corporativos, assim facilitando a
quebra das leis da natureza, é ainda mais temerário.
Portanto,
um interessante posicionamento da CNBB, do ponto de vista ético, é
fundamental. O imperativo de vencer a fome a sede imediatamente não pode
comprometer o suporte natural de vencer a fome e a sede das gerações
futuras.
Outra
atitude interessante da CNBB seria ouvir o mundo da ciência,
particularmente aqueles que discordam das mudanças propostas, já que
eles reclamam não estarem sendo ouvidos.
5) Novas atitudes.
Por
outro lado, diante da Campanha da Fraternidade desse ano, muitos
agricultores começaram de forma espontânea ou organizada a reagir ao
desmatamento. Há agricultores na Chapada Diamantina refazendo matas
ciliares, assim como a comunidade extrativista de Serra do Ramalho na
região da Lapa, assim como um interessante trabalho de recuperação de
rios da Cáritas em Rio dos Cochos, em Minas.
Há
agricultores na caatinga cultivando as árvores nativas como a aroeira e
o angico. Enfim, há uma outra linhagem de pensamento que não a
imediatista, mesmo no meio dos pequenos agricultores.
Enfim,
como vamos produzir comida para toda a humanidade? Essa é uma resposta
em construção. Em todo caso, segundo a ONU, não será devastando solos,
consumindo água além do sustentável, erodindo a biodiversidade que a
humanidade encontrará uma saída para a fome, a sede, desta e das futuras
gerações.
É possível vencer a fome e a sede em outro modelo agrícola e agrário, mas esse é um desafio do tamanho da humanidade.
Nesse caso, mais que nunca, cabe o princípio da precaução.
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